sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A pescaria

Como poucos, cultivava a solidão. Quando, findo o trabalho na fábrica, rumava ao ponto de ônibus. Ou mesmo seguindo as anáguas da lua. Exausto, ancorava o dia e ligava a tv.

Uma noite encontrou o Pescador sentado na beira do sofá. Vara de pesca em punho, jogava a linha no fundo da sala e, intruso, esperava. Ficou sem saber o que dizer. Não conseguiria removê-lo do sofá. Com o passar dos dias, acabou aceitando a convivência. Mas evitava-o. Pôs a tv no quarto, em respeito ao silêncio do Pescador. E lia Hemingway na cozinha.

Era difícil suportar aquele código de espera, a economia de movimentos, o respirar matemático do sujeito. Além disso, aqui e acolá, surpreendia a linha costurada à sombra dos móveis, a tecer emboscadas. De uma feita, tomou do anzol sua meia de lã. Outro instante, feriu o tornozelo ao sair do banheiro. O Pescador apenas desenrolava ou enrolava o molinete, trepado no sofá, como se fosse um barco imóvel. Perscrutando os cômodos da casa.

Um dia o homem trouxe uns bolinhos de bacalhau.

Cuidando não se enredar na linha espalhada ali, foi desembrulhando a gula. Na cozinha, longe do olhar alheio, mordeu o primeiro pedaço. Mas quando sentiu um forte repuxo, debateu-se, o gosto metálico do anzol no céu da boca.

Em vão. Fisgado até a sala, arrastado pelo chão, foi pego com mãos fortes e rudes pelo Pescador, que o colocou no cesto, pôs fim à pescaria e sumiu.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Medo do Escuro

Em breve, muito em breve, um novo livro meu vai ganhando forma. Na verdade, já é antigo, de alguns anos, mas esta coisa editorial e existencial tem seus vai-e-vens no tempo. O caso é que o tema "medo" sempre me fascinou, desde que me conheço por gente. A casa da minha avó é das antigas. E no interior, dormindo no casulo da rede com vista pro telhado de caibro, imaginação e sugestão dão o toque que marcará para sempre uma criança do interior. O fato é que, graças a sugestões da parceira Rosa Amanda, parti para um livro de poemas infantis sobre o medo. Agora está nas mãos da talentosa Luyse Costa - que assume os traços do bicho. Como estou de viagem, nos aperreios finais antes de partir, garanto aqui uma palhinha do livro ainda inédito:

Classificados


Vende-se

uma casa assombrada

quase sem mistério

varanda, salas e quartos

e com os fundos

para o cemitério.


Vende-se

com garantia de sossego.

Só tem uns barulhos

de fato – e não é rato:

é o fantasma que sempre

tropeça nos sapatos.


Vende-se

com portas que rangem,

janelas que batem,

objetos que voam

de supetão.


Tudo no mais perfeito estado

de assombração.

sábado, 22 de outubro de 2011

Os que estão entre nós

Confesso que a palavra "extinção" é causa de meu desconforto quando associo a alguns produtos. Quando deixam de produzir determinada coisa a gente se pega a pensar em que motivos basearam a decisão. E a linha evolutiva vai descartando fuscas, máquinas de escrever, alguns tipos de caderno, etc. Acontecerá o mesmo com o livro? Este objeto adorado como o conhecemos, folhas impressas empilhadas e presas numa base dobrável? Não sei. O furor industrial despeja uma quantidade imensa sem se dar ao luxo de olhar para os lados e ver o quanto de inovação digital também traz ao alcance os pdfs e downloads com clássicos e best-sellers em telas de cristal. Os equivalentes citados e já extintos, podemos sempre admitir, esquecendo a noltalgia, que encontraram substitutos eficientes e, portanto, não criaram vácuos práticos (isto não funcionaria para mim, eu teria todos eles de volta). O livro segue impávido como a mais eficiente tecnologia enxuta que eu conheço. E não precisou, ao longo de séculos, que nenhum dono da patente anunciasse, em apresentações suntuosas, o livro II, o livro III, o livro IV. Está tal e qual, com imperceptíveis avanços, como o velho Guttemberg o concebeu. Se fosse hoje vivo, não creio que olhasse com desprezo o kindle. Talvez tivesse sua própria empresa, lançando o E-Guttemberg. De todo jeito, o desconforto se apequena quando veja que ainda não chegamos ao ponto da barbárie livresca como está no final do livro (e filme) Farenheint 451, onde os livros eram queimados e sua sobrevivência dependia apenas da memória e da oralidade. Oremos, portanto, que este mundo ainda é rico e imaginativo, sustentado por livros.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Apartamento

Acordou com a sensação incômoda de estar sobrando no apartamento. Os músculos doíam, respirava com dificuldade. Abriu lentamente os olhos, fez um gesto de levar a mão ao rosto, mas o braço nem sequer se mexeu: estava entalado no corredor, os dedos roçando a minúscula porta do seu quarto. Notou que o mal-estar era causado pela posição (de cócoras) e por se encontrar totalmente envolto pelas paredes, teto e chão da sala, as costas voltadas para a varanda do 8º andar.

Qualquer movimento mínimo, ir para frente, recuar, encolher os braços, uma tentativa que se anulava com barulho de móveis esmagados. O apartamento estava vazio? Onde se enfiara a mulher? E a governanta? Estariam do mesmo tamanho? Veio um arrepio de pânico na nuca. Lembrou apenas que tinha dormido no sofá – esmagado pelo dedão – com a tv de plasma ligada. Ali estava a tv, parecendo um desses brinquedos japoneses de ávidos miniaturistas. Quando tentou tocar com o dedo mindinho, um barulho de cream-craker: a tela em cacarecos.

Sentiu todas as suas funções vitais, a respiração pausada, o coração acelerado. Começava a duvidar se aquilo ali era um apartamento, se não era uma brincadeira de amigos, uma maquete tecnológica. Bastaria arquear os ombros e a tampa sairia dos encaixes e ele apareceria no meio de rostos conhecidos ou talvez num show de mágica, sabe-se lá. Mas constatou, assustado, que o teto ruíra um pouco acima de sua têmpora. E, susto, a outra mão enfiada até o fundo da cozinha, sentia a vibração inorgânica de uma máquina de lavar.

Alias, bastava respirar um pouco mais forte: o deslocamento de ar já derrubou alguns quadros na parede. Ele não teve dúvidas. Estava numa reprodução exata do seu apartamento, um brinquedo de última geração com capacidade para simular o mais extenso aparato de uma realidade. E já estava se cansando da brincadeira e prestes a tomar uma atitude mais drástica (suas costas doíam mais e mais) quando a porta da frente fez um barulho e a maçaneta começou a girar.

Agora sim, ele veria mais uma função, talvez movida à pilha.

Em vez disso, entrou um dedo: fez uma pequena inspeção às cegas, encontrou uma série de botões e foi desligando pouco a pouco, a luz matinal, a corrente de ar, as vibrações do apartamento, o sistema de travas, o alarme, além da dor nas costas, a sensação de claustrofobia e – último impulso do pânico – sua consciência.

Começo com fósforos frios

Depois de uma longa ausência, volto ao formato blog para publicar meus textos, sejam eles de caráter ficcional, lúdico, crítico ou em tons confessionais. Não importa. O que vale registrar é um modo de colocar-me criticamente perante o mundo, nem que seja restrito a amigos e alguns contemporâneos. A escrita deve ser um ato de viver, se não podemos escapar dela como certas fomes não escapam ao porvir. Enfim. Começo com simples recado. Veremos se dou conta de uma prática que, em outros tempos, muito me ajudou a organizar minha pouca obra. Adiante!

André Ricardo Aguiar